terça-feira, 19 de outubro de 2010

1.1. O pintor atrás da tela

A construção pictórica vem sendo aprimorada por milhares de anos, desde as pinturas rupestres encontradas em cavernas de Lascaux (França) e Altamira (Espanha), por exemplo, datadas na pré-história. Desde então, houve tentativas em transformar a realidade circundante em objeto retratado. Estima-se que o homem das cavernas tinha um propósito sobrenatural quando desenhava animais como mamutes e pássaros nas paredes de grutas: quanto maior a semelhança entre o retratado e real, maior era a crença de que ele se apoderava sobre o modelo original. Se o desenho da presa obedecesse a uma verossimilhança mínima, o retratista/caçador poderia entender melhor comportamento da caça e assim, dominá-la. No entanto, a figura do artista não se lançava sobre a condição de autoria; seu ofício era dedicado a toda orgânica de sua tribo e de seu território: caso sucumbisse ao poder de sua presa, todo seu povo seria impactado por essa situação.

Mais adiante, os egípcios acreditavam que, ao preservarem a aparência fiel do corpo do rei, quando vivo, o monarca continuaria vivendo para sempre.

[...] o homem, sujeito do trabalho produtivo, ser que modifica a natureza, foi um mágico: na medida em que descobriu a vasta importância da semelhança, do “tornar parecido”, da dominação da natureza pelo trabalho, através dos instrumentos e consoante um propósito humano, nessa exata medida tendeu para a superestimação das suas possibilidades imediatas de conquista da natureza e foi levado a tentar obter influência sobre a realidade por meios mágicos. (FISCHER, 1987, p. 176)

Escultores e pintores egípcios se esmeravam na reprodução da feição de seu governante para dignificá-lo em outro plano, estabelecendo, mais uma vez, que a arte não tinha a função de adorno ou provocação à contemplação de observadores; a tarefa do artista consistia em manter tudo o mais nítido e permanente possível, ainda que houvesse limitações técnicas: os egípcios mantiveram certos padrões de retratação na Pintura, como o ângulo inexorável do corpo em perfil, visto em rosto, pernas e pés. Gombrich (1979) explica que a técnica do escorço, maneira de representar um objeto de acordo com o ângulo em que ele é visto, só foi implantada pelos gregos, por volta de 500 a.C., na tentativa de relacionar mais fielmente o retratado ao modelo original. Mais do que um avanço técnico, a descoberta do escorço significou ao artista a confiança naquilo que ele vê, ou seja, ele ultrapassa as regras amplamente difundidas na arte egípcia.

As obras de arte produzidas após a aplicação do escorço substanciaram um conjunto artístico mais lúcido e condizente às idéias dos primeiros teóricos da Arte, na Grécia. No século VI a.C., havia a preocupação em conhecer e estudar os elementos que constituíam as coisas, tendo como objeto de investigação a Natureza. Sob a luz da filosofia, toda produção artística era posta à prova de reflexões críticas, formadoras do pensamento racional. A verossimilhança criava um elo do objeto criado à realidade, não tendo como meta representar a imagem fidedigna do modelo retratado; mais além, o produto teria de aderir melhorias e correções do original. O artista começa a atuar e modificar sua obra para que lhe parecesse mais harmoniosa e coerente às leis que supostamente regiam a Natureza: beleza, simetria e regularidade.

Com a ascensão do Cristianismo, os ideais do mundo antigo foram suplantados pelo triunfo da Igreja, apoiada por grandes líderes, como o imperador Constantino, que, em 311 d.C., estabeleceu a religião cristã como um poder político. A Igreja possuía a maioria das possessões feudais e todo pensamento científico submeteu-se aos interesses da religião. Para consolidar sua ideologia, adotou a teoria de que Deus era a peça-chave na origem e no destino dos homens, por exemplo. Em virtude desse contexto, a arte da Idade Média foi, em sua maior expressão, dedicada a temas sacros, narrando histórias bíblicas e reverenciando figuras divinas. O propósito da arte era se ajustar à mensagem que deveria passar aos devotos, esclarecendo que os ensinamentos da Igreja eram superiores a qualquer valor da vida terrena. Uma vez que a Igreja era quem garantia financeiramente a produção das obras de arte, os autores submeteram seu talento às vontades e à inflexibilidade das idéias das autoridades religiosas da época. O conteúdo ascendeu em detrimento da forma; pouco importava a técnica aplicada, os motivos e as significações deviam ser aquelas aceitas pelas autoridades e retratavam o comum: uma figura divina ou algo de teor religioso, criando uma imagem rasa (bidimensional) e sem sugestão de mobilidade ou expressividade – longe do ideal da Antiguidade. No entanto, Francastel (1973, p. 27), pondera a respeito dessa subordinação do artista à tarefa encomendada: “Pelo fato de o artista trabalhar para um comanditário, ele não desposa de todos os seus interesses nem seus pontos de vista sociais. A obra conserva necessariamente um vestígio do debate”.

Assim, no século XIV, ensaiou-se uma nova forma de representação, concebida nas figuras realistas da escultura. Nesse contexto, o pintor florentino Giotto di Bondone (1266?-1337) inovou ao retratar personagens de fé com corpo e face modelados por tons claros e escuros, com aplicação do escorço, e de tal modo, suas obras ganharam contornos ultra-realistas, pois sugeriam volume e profundidade entre planos devido ao uso da perspectiva óptica que projetava a cena num espaço cúbico. Essa ousadia foi suficiente para que o pintor ficasse conhecido por toda a Itália e mais tarde, no norte da Europa, também palco de grandes manifestações artísticas, e pela primeira vez, o nome de um artista ganhava notoriedade.

Não se deve pensar, no entanto, que o aparecimento de novas idéias e formas de expressão se deu bruscamente; o espírito humano está sempre em ebulição, questionando cânones que limitassem sua atitude genuína. É necessário ter em conta que a criação de grandes templos católicos proporcionou a criação de burgos ao seu redor, e aos poucos, o estilo de vida urbano aflorou e modificou o pensamento coletivo. Há indícios de que, no século XIII, mesmo que muito timidamente (principalmente na Itália, território de estreita relação com a Igreja), alguns artistas abandonaram a produção conservadora e se dedicaram a estudar métodos de representação mais fiéis à realidade. É dessa época que se datam os primeiros retratos, se bem que com maior força na escultura, encorpando em mais uma frente a visão humanista, já em vias de difusão, na qual o Homem era o agente principal da natureza.

A adaptação da Pintura aos conceitos da técnica de Giotto se deu num interposto entre a arte medieval, sacra e ligada aos valores da Igreja, ao florescimento da arte do século XIV, a arte renascentista, com maior expressão na Itália. Com olhares voltados ao período Clássico, os italianos acreditavam que a ciência e a erudição da Antiga Roma deveriam ser revividas para o nascimento de uma nova era artística, em que a criação figurativa era sistematizada.

A arte do Quattrocento, como é conhecido o período do século XIV, deu importância ímpar às proporções do objeto representado, em virtude do desenvolvimento das ciências tão em voga na época. Essa sistematização que estabeleceu que tudo seria enquadrado num estudo físico-matemático entra em concordância com o ideal de Beleza da Antiguidade, em que a harmonia era fruto da sapiência da natureza e de suas leis, as quais se estendiam aos animais, às coisas e aos espaços. Em busca da ilusão de realidade num plano bidimensional, tal qual a tela da pintura, foi alcançada com o uso da perspectiva óptica na imagem, estratégia técnica para a representação da profundidade do espaço.

(continua)

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