terça-feira, 19 de outubro de 2010

3.2. O diretor na nouvelle vague francesa

O movimento nouvelle vague, desenvolvido nas décadas de 1950 e 1960, foi liderado principalmente pela juventude francesa, bem armada culturalmente. Era uma massa de jovens crescidos durante a Segunda Guerra e que acumulou uma bagagem de questionamentos típicos de quem possui o espírito ávido por liberdade.

Os jovens tinham relações estreitas com as artes modernas e novas linguagens, como a da televisão que surgia com grande alvoroço. Já críticos e inquietos, os freqüentadores de cineclubes se informavam sobre as possibilidades de um cinema diferente daquele que chegava como uma avalanche às salas de exibição francesas; era incongruente aceitar um produto cultural, pouco semelhante à atualidade do país (que, diga-se de passagem, enfrentou a guerra contra a Argélia de 1954 a 1962) num estado político que beneficiava o sentimento nacionalista. Ademais, por essa juventude freqüentar cineclubes e reuniões de debates sobre as artes e conhecer bem um cinema alternativo ao que lhe era oferecido, havia sede por uma atitude de subversão, contra a apatia tradicionalista e a aceitação de um domínio cultural já gasto.

Assim como o neo-realismo italiano, símbolo de uma ressurreição artística, rejeitava a pseudo-transparência do ilusionismo clássico do cinema hegemônico, incorporando uma consciência mais evoluída de representação, baseada no acaso, na mise-en-scène mais solta, no trabalho de câmera mais leve e dinâmico. O cinema da nouvelle vague, teorizado principalmente pelo professor André Bazin, estabelecia suas características enquanto era construído; não era objeto de um planejamento.

Uma vez desqualificadas as convenções do cinema tradicional (não por completo, porque respeitavam toda a história do cinema que havia sido traçada para que fosse alcançado o movimento), buscavam na linguagem elementos novos ou pouco utilizados que seriam mais adequados à atualidade, à modernidade: a narrativa se desprendeu do fluxo linear típico da literatura, outras linguagens eram testadas (havia a utilização de arquivos de filmes, desenhos, pinturas) e uma liberdade na montagem nunca antes vista na história do cinema narrativo se fortalecia pouco a pouco, utilizando jump-cuts (passagens imediatas de uma imagem a outra, com a finalidade de criar impacto), cortes bruscos e pequenos saltos temporais, como se o filme tivesse sido interrompido. Esse recurso foi amplamente utilizado numa das obras-primas do período, Acossado, de 1959, dirigido por Jean-Luc Godard:

Os filmes de Godard não apresentam mais aquele tipo de espetáculo cuja imagem se oferecia como uma transparência reveladora dos fatos – ele utiliza-se, de um modo crescente, de um universo visual heterogêneo, composto de diferentes materiais, e avança decididamente rumo à descontinuidade do cinema-discurso. A câmera do cinema moderno não mais se esconde, mas participa abertamente do jogo de relações que dá estrutura aos filmes. Os atores não mais pretendem ignorar a presença do equipamento de filmagem e sua ação deixou de ser resultado de um planejamento próprio à “mise-en-scène” tradicional. Agora, eles fazem o evento acontecer diante da câmera, dirigindo-se diretamente à platéia. (XAVIER, 1977, p. 118)

O realizador encarava sua obra como uma página em branco, da qual só saberia o final depois que concluída a montagem, último estágio no qual conferia a seu produto intelectual suas convicções e desejos. Se levarmos a cabo essa definição sobre a maneira de dirigir os filmes, pode-se dar a impressão de que foi um conjunto de produção heterogêneo, que valorizava traços pessoais de cada diretor. Contudo, as realizações possuíam orientações em comum, como o modo de produção deficiente, sem investimentos, a opção estética pelas cidades, o interesse pelas questões existenciais dos personagens e os dilemas da juventude como um todo, visto em Os Incompreendidos (François Truffaut, 1959).

Foram as diferenças do olhar de cada diretor que enriqueceram o debate sobre os caminhos do cinema neste período e no futuro. Fruto da paixão pela expressão do ponto-de-vista, da necessidade de compartilhamento, complementação e divulgação de opiniões, os veículos especializados na crítica de cinema se multiplicaram, com destaque às revistas Cinéthique e Cahiers du Cinéma.

Na edição 31, de janeiro de 1954, da Cahiers du Cinema, o crítico e próspero diretor François Truffaut escreveu um artigo intitulado “Une certaine tendence du cinema français” (Uma certa tendência do cinema francês), onde reprovava as adaptações de romances da literatura no cinema francês. Ele considerava que o verdadeiro autor de um filme era aquele que transcendia a reprodução do roteiro, o qual quando transposto fielmente ao filme, não conferia à obra qualquer traço de personalidade do diretor. Assim, a condição de autoria estava ligada à expressão de marcas genuinamente pessoais, que dessem vida ao material original. O artigo teve repercussão estrondosa e gerou reações entre diversos críticos, aumentando a discussão em torno da expressão pessoal do diretor em sua obra – de um lado, estava o auteur, capaz de realizar algo verdadeiramente próprio, e de outro, o metteur en scène, baseado na imitação, comparável a um simples técnico que realizar seu trabalho como uma manufatura: “O trabalho do metteur en scène nunca será mais do que a soma das partes. Provavelmente será menos. A personalidade do autor, por outro lado, confere à sua obra uma unidade orgânica”[1].

A teoria da inclusão de elementos próprios do diretor em seu filme ficou conhecida como “política dos autores”, que reconhecia a valorização da obra conectada ao nome do diretor como um critério de avaliação da qualidade do realizado.

Stam (2003, p.48) defende que a idéia do cineasta-autor foi herdada da literatura, e sua incorporação ao cinema não foi uma novidade do período modernista, já que idéia de autoria surgiu no período mudo, na tentativa da legitimação artística por parte do cinema, que tentava se afirmar como arte independente.

Paralelamente, a indústria cinematográfica norte-americana sofria um revés justamente nas esferas criticadas pelos movimentos artísticos do pós-guerra. Desde 1948, o sistema de estúdios estava desmantelado, a partir do desmanche da integração vertical regulamentado pelo Governo. Fortaleciam-se os debates pós-classicismo, uma vez que os modelos temáticos do cinema de gênero iam perdendo espaço justamente pela falta de originalidade e desinteresse do público. Com a perda gradativa do prestígio das companhias cinematográficas em virtude do mau desempenho de seus filmes em bilheteria, os grupos de produção independente ganhavam espaço, dando oportunidade para diretores que dialogavam com o cinema europeu.

O surgimento de cinematografias nacionais - onde o cinema clássico narrativo oriundo dos Estados Unidos se apresentava como majoritário - embasadas aos conceitos dos movimentos pós-guerra, deflagrou o cinema moderno principalmente pela discussão da transparência de seu modo de representação.

O cinema moderno pode ser entendido como uma maturidade no consciente de fazer e pensar o cinema e seu procedimento, especialmente em termos políticos e sociais. Tornou-se referência a outras cinematografias, como o nuevo-cine latino-americano e o cinema novo brasileiro. Esse último discutia os problemas da realidade brasileira em seus diversos aspectos através da alusão ao passado, com três grandes áreas temáticas: escravidão, misticismo religioso e violência[2], e no qual se destaca o baiano Glauber Rocha, autor de Deus e o diabo na terra do sol (1964).

O cinema moderno e sua liberdade estética e expressiva é um dos percalços encontrados pelo Cinema clássico na sua afirmação de meio mais “legítimo” de retratação do universo do espectador, seja ele físico ou fantasioso.

Ao longo da trajetória do Cinema na história, já haviam sido disseminadas outras posições de discordância ao método de representação de Hollywood (por exemplo, a escola soviética e as vanguardas estéticas dos anos 1920 e 1930); a maioria deles, sugerindo a maior presença intelectual do diretor em todas as etapas da realização, mas que foram “sistematicamente esmagados, quer pelo comércio cinematográfico que não abria suas portas a outras modalidades de cinema que não a do sistema, quer pela repressão política e policial”[3].

Tanto no neo-realismo italiano quanto na nouvelle vague francesa, o diretor está presente nas escolhas estéticas e na ilustração de um discurso; é metaforicamente uma instância narradora[4], que existe, mas não se vê, é destituída de corpo. Não se trata agir sob escolhas técnicas acerca da decupagem clássica, porque as mais importantes são as escolhas ideológicas, que faz do espectador um aliado, pois o coloca no lugar da câmera como personagem e testemunha, diferentemente do cinema clássico, onde o espectador “espia por uma janela”.

A principal vantagem dos diversos “cinemas novos” que surgiram no mundo nos últimos anos é talvez a de ter derrubado os termos deste problema-prisão [o cinema de gêneros e assuntos colocados]: hoje, nos filmes vivo, muitas vezes o dito faz questão de comandar o dizer; o cineasta “novo” não procura um assunto de filmes; ele tem coisas a dizer, ele as diz pelo filme [...] Pois, para a arte da tela, escapar às pressões do dizível fílmico, é também escapar mais um pouco do isolamento relativo e que já durou demais, da chamada “cultura cinematográfica”. (METZ, 1977, p.226)

Como dito anteriormente, a Segunda Guerra Mundial e seus reflexos nas cinematografias das nações abordadas foram apenas agentes catalisadores, que beneficiaram, porém não provocaram o nascimento de um cineasta; este já existia, é o enunciador do discurso que, por causa do conflito, pode ter adquirido uma consciência mais ampla, fazendo-o contestar as convenções cinematográficas. Mais além do simples “relacionar-se com a realidade”, seu intuito é transformá-la, é desacobertá-la da cortina de fumaça das representações mecânicas e puramente comerciais.

Em contrapartida, esse intuito revelatório, que se defende como democrático ao realocar o espectador da função de simples observador que se envolve por sentimentalidades superficiais de duração de uma sessão de cinema para parte envolvida no processo representativo, é posto em prova justamente por elementos empregados na tentativa de neutralizar os ranços narrativos: sempre haverá o peso da presença da câmera, que modifica o comportamento do mais experiente ator ao mais anônimo figurante, sempre haverá a seletividade em busca da melhor tomada durante a montagem fílmica, sempre haverá a obrigatoriedade de que a ação se desenvolva um espaço delimitado pelo enquadramento. Tudo isso faz com que o “cinema de revelação” seja apenas mais um método de representação da realidade ao plano artístico.

Desta maneira, se compararmos o cinema clássico ao cinema de ruptura, será impossível avaliar qual deles é mais importante, pois ambos mexem com a intensidade das emoções, as quais são subjetivas. O cinema de ruptura é apenas mais uma peça no jogo de ilusão e revelação de certos mecanismos que atuam sobre o cotidiano e a dinâmica natural da humanidade. Esse dilema entre ser ou parecer-se com a realidade flagrante, entre assumir ou ocultar-se como meio de fabricação de uma ficção criou questionamentos sobre o papel que o diretor deve desempenhar sobre a obra e seu discurso: deve o diretor contribuir com sua faculdade intelectual para um cinema de aparências, acusado de servir a fins comerciais somente, ou deve atuar sempre como uma voz de denúncia sobre a efemeridade das ilusões, menos interessante que a consciência crítica?

É possível que, a partir desta hesitação entre ser “o faz-de-conta” ou ser um instrumento de revelação de uma verdade superior ao plano encenado, contida no modernismo e radicalizada no pós-modernismo, tenha surgido o cinema reflexivo: “é a partir do modernismo que o antiilusionismo agressivo passa a predominar. A agressão torna-se a atitude inevitável diante da divisão existente entre o artista e o público”[5].



[1]BUSCOMBE, 1973, in RAMOS, 2005, p. 284.

[2] CARVALHO in MASCARELLO, 2006, p.292.

[3] BERNADET, 1985, p.60.

[4] MACHADO, 2007, p.19.

[5] STAM, 1981, p.23.

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