terça-feira, 19 de outubro de 2010

1.2. O pintor na tela

As novas diretrizes da arte, principalmente da Pintura, e do pensamento humano tomaram terreno em toda a Europa. O já contestado tema religioso deu lugar às representações do Homem, popularizando, enfim, a produção de retratos, principalmente nos países do Norte, “onde com os van Eyck o retrato se apresenta muitas vezes de três quartos, é a verdadeira individualidade da pessoa representada, física moral, que se acusa”[1].

Francastel (1987) contextualiza a Pintura dos países Nórdicos, no início do século XV, ligada à procura da simetria e à problematização do espelho, os quais transcendem a composição de duas dimensões. Em outras palavras, se pensarmos a imagem ideal do Quattrocento (“representação objetiva, realista do mundo”[2]), podemos imaginá-la dentro de uma caixa, tal qual é visto o cenário do teatro tradicional. Exclui-se uma das superfícies do cubo, gerando a “janela de observação do espectador”. Com a inclusão de um espelho, com a face voltada à “janela do espectador”, um novo espaço material, antes invisível, é oferecido ao observador. É rompida, então, o mundo fechado e finito da pintura que obedece aos postulados da perspectiva geométrica.

Criando um desafio à observação comum da arte pictórica e uma representação do espaço curiosa, o pintor flamengo Jan van Eyck realizou a tela, com tinta a óleo, O Casal Arnolfini, em 1434.

[...] um simples recanto do mundo real tinha sido subitamente fixado num painel como por mágica. Não lhe faltava nada: o tapete e os chinelos, o rosário na parede, a pequena escova ao lado do leito e as frutas no parapeito da janela e sobre a arca. Era como se pudéssemos fazer uma visita aos Arnolfini em sua residência. O quadro representa provavelmente um momento solene na vida do casal: os seus esponsais. [...] Provavelmente o pintor foi chamado a registrar esse importante momento como testemunha, tal como um notário poderia ser chamado para declarar que este presente num ato solene idêntico. Isso explicaria porque o mestre por seu nome numa posição de destaque no quadro, com as palavras latinas “Johames de eyck fuit hic” (Jan van Eyck esteve presente) (GOMBRICH, 1979, p.179).

Ilustração 1 - O Casal Arnolfini, de Jan van Eyck (1434)

O pintor fez questão se incluir de duas maneiras no quadro. A primeira delas foge à tradicional assinatura sobre a autoria da obra, com a inscrição da frase sobre sua presença no momento solene do casal retratado. Ela se encontra em local de destaque na composição, entre as personagens, como se fizesse parte do espaço. A segunda inserção da marcas sugestivas da existência do artista é menos nítida, principalmente porque é, a olho nu, pouco “iluminada” e anamorfa. Ao fundo do quarto do casal, na parede que se opõe à vista do espectador, há um espelho convexo redondo, de borda decorada, que reflete a face cúbica recortada para que fosse a “janela do observador”. Através do reflexo do espelho, vemos as costas do casal Arnolfini, assim como tudo o que se encontra à frente do casal: um vulto e uma soleira de porta, aquela do quarto retratado.

Ilustração 2 - Detalhe da parede em O Casal Arnolfini, de Jan van Eyck (1434)

Ilustração 3- Detalhe do espelho em O Casal Arnolfini, de Jan van Eyck (1434)

O que a imagem do espelho sugere por lógica é que o vulto junto à soleira da porta nada mais é que a própria representação do pintor, de Jan van Eyck em pessoa. Não satisfeito em se declarar presente através da frase na parede, o pintor se corporificou, num joguete de cumplicidade junto ao observador, porque também assim se condiciona.

Não se trata de um caso típico de auto-retrato, gênero da Pintura que estava sendo praticado por alguns autores com a finalidade de imortalizarem sua imagem à posteridade. O auto-retrato, é claro, não deixa de ser um traço da estilo do autor em sua obra, porém, não são todos as obras desse gênero da Pintura que dizem respeito a individualidade do autor, pois em sua maioria, priorizam indubitavelmente o aspecto físico do retratado. Também é um exercício de recepção diferente de quadros “narrativos”, pois coloca face a face o observador e artista e expõe a parte invisível que compõe o quadro.

Do século XVI, pode-se apontar a Pintura maneirista, situada entre o apogeu da Renascença e o apogeu do Barroco, como expressão direta do subjetivismo do autor como marca estética: “Na época do ‘Maneirismo’, que teve lugar imediatamente após o apogeu do Renascimento, a metáfora do espelho quase se transforma em obsessão e em substrato da angústia, da morte e do tempo”[3]. O artista da época, como Caravaggio e Tintoretto, emanava em suas obras uma nova sensibilidade, diferente daquela demasiadamente criteriosa e perfeccionista do Renascimento, que explicitava a inquietude e a dualidade próprias de seu âmago.

Já no período marcado pela arte Barroca (séculos XVI a XVIII), um artista que se destacou pela exploração de seu estilo próprio como tema de suas obras foi Diego Velázquez (1599-1660). Um de seus quadros mais famosos é denominado As Meninas, realizado em 1656, na Espanha. Poderíamos afirmar, numa observação imediata, que o tema do quadro é um retrato da Infanta Margarita, a criança loura, que olha diretamente à “janela do observador”. No entanto, num olhar mais atencioso, começamos a identificar os elementos “coadjuvantes” do quadro: as damas de honra da criança real e dois serventes da Corte que também olham na direção do espectador, assim à direita...

[...] Vemos o próprio Velázquez trabalhando num enorme quadro e se, olharmos mais cuidadosamente, também descobrimos o que ele está pintando. O espelho na parede do fundo reflete as figuras do Rei e da Rainha, que estão posando para o retrato. Portanto, vemos o mesmo que os monarcas vêem [...] (GOMBRICH, 1979, p. 320)

Não se sabe exatamente qual era a proposta de Velázquez ao criar As Meninas, mas suspeita-se que, assim como o efeito produzido por van Eyck n’O Casal Arnolfini, o pintor quis se inserir como testemunha ou agente participativo de situações importantes, como na reunião informal da família real espanhola.

A presença do espelho reformula e amplia a maneira de entender a situação retratada, uma vez que a posição comum do espectador é o centro dos olhares das figuras do quadro, como uma quebra de lei. A pintura de Velázquez é um jogo de espectatorialidade: o observador da obra tarda a perceber que existe uma nova imagem, um novo espaço representado pelo reflexo do espelho, o qual descobre a parte invisível da situação-tema. Não basta aceitar que a pequena Margarita seja digna de ser retratada, mas é preciso pensar o quadro como expressão da mente de seu criador, esquemática e perspicaz, e não somente um objeto de observação. Quando o apreciador da obra consegue estabelecer a relação entre as duas imagens, surge um novo significado em volta da pintura, que diz que é necessário mais do que um olhar contemplativo à obra de arte, e sim entendê-la por um exercício intelectual.

Uma vez que uma projeção, uma interpretação, ancora-se na imagem que temos à nossa frente, fica muito mais difícil destacá-la. Isso é uma experiência comum na interpretação de pinturas enigmáticas. Uma vez decifradas, é difícil, ou até impossível, recobrar a impressão que elas provocaram em nós quando procurávamos ainda pela sua resolução. (GOMBRICH, 1995, p.194)

Ilustração 4 - As Meninas, de Diego Velásquez (1656)

Na Holanda, o pintor Rembrandt van Rijn (1606-1669), também do período Barroco, optou por usar sua arte como registro íntimo de sua vida. Deixou um legado de mais de cem auto-retratos que simbolizaram as passagens de sua vida, desde sua juventude próspera até sua senilidade. Em cada retrato, uma análise psicológica de si mesmo: seu rosto refletia seu estado emocional de maneira mais sincera, sem esconder as marcas do tempo. Pintava como se via e se sentia, ou seja, estava sempre em busca sua verdade pessoal retratada.

A Revolução Francesa, marco da Idade Moderna, foi crucial à implantação de novas diretrizes na Arte. Os artistas dos séculos XVII e XVIII passaram a rejeitar o que sugeria o passado e suas tradições, e se dedicaram a mostrar seu interior e seu olhar particular sobre o mundo novo. Um desses pintores foi o espanhol Francisco Goya (1746-1828), que, apesar de receber encomendas de retratos, principalmente de nobres, não deixava de expor as emoções de cada um emanava, mesmo que fossem as mais chocantes: ambição, fealdade, indelicadeza. Além dos retratos, Goya realizou obras de elementos fantásticos, como bruxas e demônios, que traduziam sua inquietude frente à opressão religiosa da duradoura Inquisição espanhola.

A manifestação do subjetivismo e a inserção de marcas pessoais do autor em suas obras foram, por um período, suplantadas pela tendência realista na arte do século XIX, o qual passava por modificações estruturais face à Revolução Industrial e a conseqüente desvalorização do trabalho artesanal. Mesmo passando por uma fase de subestima,

A idéia de que a verdadeira finalidade da arte era expressar a personalidade só poderia ganhar terreno quando a arte tivesse perdido todas as outras finalidades. Não obstante, do modo que as coisas tinham evoluído, isso era um enunciado verdadeiro e valioso. Pois o que as pessoas interessadas em arte passaram a procurar em exposições e estúdios já não era uma exibição de habilidade comum – a qual se tornara comum demais para justificar qualquer atenção; o que elas queriam era que a arte as pusesse em contato com homens com quem valeria a pena ter relações, homens cujo trabalho era testemunho de uma sinceridade incorruptível, artistas que não se contentavam em copiar efeitos de outros e não dariam uma única pincelada sem perguntarem a si mesmos se ela satisfazia à sua consciência artística. (GOMBRICH, 1979, p. 398)

Na esteira do Realismo, o Impressionismo surgiu ao final do século XIX, se caracterizando pela representação de um momento único do olhar do autor. Dada essa fugacidade do “momento exato”, os quadros tenderam a ser compostos por pinceladas rápidas e imprecisas, e desta forma, agradaram pouco aos observadores no seu surgimento, acostumados à arte academista (essa rejeição também se deve ao florescer da arte fotográfica, por volta dos anos 1860, meio técnico da “fixação do momento”). No geral, o Impressionismo era uma nova forma do criador de expressar, pois renunciava a qualquer parâmetro de representação para atingir um nível de liberdade criativa guiada por uma sensibilidade inédita.

O destaque do período expressionista, que sucede o Impressionismo, foi o holandês Vincent Van Gogh (1853-1890), cuja marca de subjetividade é possível de ser reconhecida pela pincelada ímpar e pela escolha de cores. Cada toque do pincel e como ele modelava a tinta no quadro revelam um pouco da sua inconstante e perturbada atividade mental. Bem como Rembrandt, Van Gogh deixou uma série de auto-retratos que refletiam seu estado psicológico, que variava entre momentos de lucidez e fervorosa energia criativa. Mais do que seu veículo de expressão, a arte representava a Van Gogh um canal de comunicação com o mundo, pois ele foi notadamente recluso e muitas vezes arredio à companhia de outrem, embora seu isolamento e solidão o incomodassem a ponto de lhe causar acessos de loucura.

Ao nascer do século XX, a arte moderna (do ano de 1900 em diante) se lança à procura de uma nova linguagem pictórica, diferente daquela proposta durante toda sua história, dando espaço, assim, a expressões iconoclastas. Os artistas modernos concluíram que todos os períodos e escolas artísticas propuseram cânones e convenções (que se estabeleceram inclusive no inconsciente coletivo) e a atitude imediata era voltada à autonomia da forma e à força da expressão, invalidando a dependência do assunto (conteúdo) e a submissão à natureza[4]. No entanto, “o exasperado individualismo que impele cada artista de criar um estilo próprio, pessoal, torna bastante difícil analisar a arte contemporânea”[5], uma vez que o período foi marcado por uma descentralização de manifestações artísticas, entre elas o fauvismo, o cubismo, o futurismo e o surrealismo e outras.

De qualquer maneira, é possível identificar ocorrências do uso da arte como meio básico de expressão da intimidade e individualidade do criador na arte do século XX. Isto é expresso no conjunto artístico de Frida Kahlo (1907-1954). A vida da artista mexicana foi uma trajetória de tragédias e transformações, envolvendo a ocorrência de doenças, acidentes, desilusões e agitações políticas. O espelho foi um instrumento essencial em sua arte, já que, em decorrência de um acidente em 1925, Kahlo passou meses acamada sem poder realizar outra atividade que não fosse a Pintura. Sua mãe fixou no teto de seu quarto, acima de sua cama, um espelho e a partir de então, a pintora passou a criar quadros em que ela mesma estava representada, os quais traduziam por imagens a esfera de sua vida que estava em voga naquele momento. Segundo ela, “eu pinto auto-retratos porque na maior parte do tempo estou sozinha, e porque sou a pessoa que conheço melhor”[6] .

Alcançadas as referências à arte contemporânea, deve-se ter em conta que o intuito deste capítulo fora o de situar o leitor na situação de inclusão do autor e de seu universo dentro de sua própria obra, com a finalidade de informá-lo historicamente, dentro do campo da Pintura, sobre a ocorrência desse aspecto metalingüístico. Não se ousou, de maneira alguma, em delimitar a História da Arte em suas passagens mais importantes, porque, na verdade, elas não podem ser identificadas e não há arcabouço teórico amplamente apoiado para assim defini-las; a Arte é para e pela Humanidade e por isso, neste contexto, nada pode ser negligenciado. Toda expressão artística e seus períodos de aplicação foram igualmente importantes no curso da História, embora nem todos tenham relação com o foco tratado e por isso, não foram abordados.

Desta maneira, uma vez expostas condições primárias de ciência da inserção do artista e de seu ofício na obra de arte, é possível verificar que o Cinema se incorporou dessa mesma característica em diversas obras, assunto que será tratado nos capítulos seguintes.




[1] FRANCASTEL, 1987, p. 177.

[2] Idem, 1990, p. 23.

[3] HOCKE, 1974, p. 14.

[4] MONTERADO, 1978, p.197

[5] Ibid, 1978, p. 193.

[6] FRIDA KAHLO CORPORATION, acesso em 09 de outubro de 2008.

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