terça-feira, 19 de outubro de 2010

CAPÍTULO 2: O DIRETOR POR TRÁS DA CÂMERA.

2.1. O “papel” do diretor no Primeiro Cinema

Quando se pensa nos primórdios do cinema, vêm à mente do espectador as imagens de um filme mudo, em preto e branco, de câmera fixa. No entanto, as obras que seguem essas características só se multiplicaram e se popularizaram anos mais tarde do surgimento das verdadeiras imagens cinematográficas iniciais.

Se é difícil dizer quando nasce o cinema, mais difícil ainda é reconstituir a sua história. Estamos tão condicionados a um modelo de cinema que nem sempre nos é fácil perceber a sua diversidade e a descontinuidade de sua história. Mesmo se abstrairmos toda a história anterior e admitirmos a convenção de que o cinema nasce com os irmãos Lumière no Grand-Café de Paris, ainda assim há todo um período de obscuridade que precisa ser reconstituído, que é justamente o período representado pelos seus dez ou 15 primeiros anos, o período portanto imediatamente anterior ao enquadramento institucional do cinema. (CESARINO, 2005, p.11)

A idéia de representação de movimento através de imagens data de muito anteriormente ao período considerado coincidente ao nascimento do cinema, ou seja, ao final do século XIX. As já citadas inscrições em cavernas de Altamira, na Espanha, comprovam a tentativa de traduzir ações ao plano pictórico, se observamos, por exemplo, os desenhos do homem pré-Histórico de um bisão de oito patas, que representaria o animal correndo em boa velocidade. A exploração de recursos e mecanismos que possibilitaram a percepção do cinema tal qual o conhecemos também pode ser vista na aplicação das propriedades da persistência retínica em brinquedos ópticos de popularidade na Europa desde o século XVII.

Falar sobre o despertar do Cinema do século XIX é tratar de uma época não tão simples de ser delimitada, de ebulição de novas idéias, de transformações e propostas plurais que atingiam a cultura, a política e a economia, e reconfiguravam o pensamento coletivo. Contemporaneamente, vinham a conhecimento público as maravilhas do telégrafo, da eletricidade e da fotografia, entre outros adventos modernos.

O cinema, então, marcou o cruzamento sem precedentes desses fenômenos da modernidade. Tratava-se de um produto comercial que era também uma técnica de mobilidade e efemeridade. Foi uma conseqüência e uma parte vital da cultura urbana que se dirigia a seus espectadores como membros de um público de massa coletivo e potencialmente indiferenciado. Era uma forma de representação que foi além do impressionismo e da fotografia, encenando movimentos reais, embora estes nunca pudessem ser (e ainda hoje não são) mais do que a progressão serial de fotogramas fixos. Era uma tecnologia destinada a provocar respostas visuais, sensuais e cognitivas nos espectadores que estavam começando a se acostumar aos ataques de estimulação. (CHANEY e SCHWARTZ, 2004, p.27)

O processo fotográfico, por sua vez, contribuiu enormemente para a construção de novas formas de representação dentro das artes plásticas, enquanto que, à Pintura, libertou o artista da obrigatoriedade da imagem realista e inspirou o Impressionismo; para o homem moderno, da era industrial, abriu novos horizontes para o registro “fiel” do mundo visível através da captação do momento, sobrepondo-se à efemeridade e à fugacidade do momento.

O que se pretende afirmar é que o Cinema sempre foi algo buscado através da evolução da imagem e cada etapa do desenvolvimento técnico de aparelhos e dispositivos que complementaram o conceito de representação significou marcos-chave para a concepção da imagem cinematográfica: os vitascópio, quinetoscópio e quinoscópio de Thomas A. Edison, o fuzil fotográfico de Etinénne-Jules Marey, o bioscópio de Max e Emil Skladanowsky, o cinematógrafo dos irmãos August e Louis Lumière... É no contexto do surgimento destes e outros aparatos modernos que Cinema entra em ascensão, por aliar a curiosidade por ilusionismo ao desejo de obter a percepção do movimento em meios fixos.

Ao final do século XIX, as primeiras exibições de peças cinematográficas eram realizadas em vaudevilles, salões de curiosidades, onde as atrações se resumiam em apresentações teatrais, shows de mágica e números com animais amestrados – ou seja, o espetáculo era formado por diversas apresentações, sem seqüência pré-definida ou unidade lógico-narrativa, que buscava apenas o divertimento do público pagante.

Os primeiros filmes realizados eram peças de curtíssima duração, com apenas uma tomada que elucidava toda uma encenação, fosse ela uma pequena piada ou situação engraçada, ou uma filmagem de um acontecimento natural, do cotidiano das cidades.

O filme de captação direta, sem interferência de uma proposta narrativa (cinema de “mostração”, como defende André Gaudreault[1]) também era popular: “O Cinema sempre oscilou entre dois pólos, o de fornecer um novo padrão de representação realista e (simultaneamente) o de apresentar um sentido de irrealidade, um reino de fantasmas impalpáveis”[2]. Em linhas gerais, é possível esquematizar duas correntes de representação no florescer do Cinema: a corrente “realista”, pelos documentários, filmes “de atualidades” e “de paisagens”, travelogues e cine-reportagens dos irmãos Lumière, por exemplo, em que é filmado o que acontece naturalmente em frente à câmera; e a corrente ficcional, bastante influenciada pelo teatro, por utilizar de seus recursos (cenografia, encenação etc.) em situações cujo desenvolvimento se dá pela intervenção do realizador.

É importante frisar que as duas correntes não eram antagônicas, mas se complementavam. Havia filmes de caráter documentário, como Execution of Czolgosz with panorama of Auburn prison (Edwin Porter, Edison, 1901), que mesclava tomadas da prisão onde o assassino do presidente McKinley foi executado com cenas da recomposição da execução, ou seja, cenas montadas, fictícias.[3]

Entre números encenados, destacam-se as gags (piadas ou histórias curtas e engraçadas, com estrutura narrativa mais completa, com preparação e desfecho[4]), os filmes de perseguição (que ganharam sucesso entre 1903 e 1906) e os trick films (histórias com transformações e explosões). Ainda que tivessem problemas com ritmo e montagem, os primeiros filmes tinham a consciência do fascínio que causavam nas platéias, com a mescla de efeitos de encantamento e de realismo inédito, o que pode ser comprovado em obras da época com referências metalingüísticas, como Uncle Josh at the moving picture show (Edison, Porter, 1902), sobre um caipira que não sabia distinguir a imagem da tela de cinema e a realidade (reflexidade fílmica de recepção).

Costa (2005) avalia que o “primeiro cinema” é aquele praticado entre 1894 e 1908, cujas obras ainda não se submetiam definitivamente ao padrão narrativo. Sem a pretensão da construção de encenações de lógica apoiadas em causas e conseqüências, eram exibidos vários filmetes de duração curta, tais como pequenas montagens teatrais, justamente para variar as atrações. Mais além: o que era encenado e possuía uma linha lógica narrativa deveria ser facilmente compreendido por todo o público, desde o mais jovem ao mais letrado. Dessa forma, os assuntos das exibições eram de prévia ciência do espectador (quando não auxiliados por um apresentador - boni-menteur, em francês ou lecturer, em inglês[5]) e de fácil assimilação, dando espaço, então, para a exibição de inúmeras Paixões de Cristo, em mais uma demonstração de intimidade entre Igreja e Arte. As Passion plays abriam espaço às obras de mais de um plano, garantindo o aparecimento de filmes com maior duração.

Entre 1902 e 1907, foram desenvolvidas estruturas mais completas e auto-suficientes de narratividade, com relações temporais e confusões. Entre elas, podemos destacar The great train robbery, dirigido por Porter (Edison, 1903), com montagem que dava sensação de continuidade do quadro e paralelismo de ações.

O francês George Méliès, assim como Porter, era um experimentador. Defensor do cinema fantasioso, o “cinema de escapismo”, que buscava o encantamento do espectador, como se este estivesse diante de um número de mágica, se desdobrou entre as funções de diretor, ator e técnico de efeitos ópticos. Sua marca principal nos trick films era o efeito de surgimento e desaparecimento, possíveis pela interrupção do funcionamento da câmera e sua retomada com mudanças de posição e substituições dos elementos da cena. O mundo da imaginação deu suporte a esses artifícios: em Eclipse de soleil en pleine lune, de 1907, é possível ver o próprio Méliès na pele de um astrônomo que observa o eclipse solar por telescópio quando o Sol e a Lua ganham vida; em Les cartes vivantes (1904), o realizador encarnou um mágico que aumentava o tamanho das cartas de baralho e transformavam-nas em pessoas.

Foi entre os anos de 1908 e 1909 que as empresas americanas se lançaram ao processo de tomada de controle da ascendente indústria cinematográfica, regulamentando a venda e o escoamento de cópias. Estúdios nacionais, como Vitagraph e American Mutoscope, enfrentavam a concorrência de empresas francesas, como a Star Film e a poderosa Pathé, que liderou o mercado mundial até a eclosão da Primeira Guerra Mundial

No período compreendido entre 1907 e 1913, as histórias se tornariam ainda mais complexas e o público dos nickelodeons (casas especializadas em exibição de filmes) cresceu, exigindo cada vez mais dos filmes narrativos, os quais assumiram a dianteira da preferência popular, vencendo o cinema de registro documental. Assim, as histórias ganhavam mais planos (e maior duração) e o cinema se firma como a primeira mídia de massa da história.[6] Pouco a pouco, a ordem da cadeia cinematográfica ganhava formas industriais. O realizador, que antes acumulava funções de ator, produtor, montador etc., se desfaz de incumbências em virtude da crescente divisão do trabalho e da especialização da produção, que atendia às demandas da platéia.

Supunham os intelectuais do século XIX que o cinema seguiria a fotografia na sua função de “registro”, mas foi o contrário que aconteceu. O novo sistema de expressão, assim que ganhou forma industrial, impôs-se esmagadoramente como território das manhas do imaginário [...] A história efetiva do cinema deu preferência à ilusão em detrimento do desvelamento, à regressão onírica em detrimento da consciência analítica, à impressão de realidade em detrimento da transgressão do real. (MACHADO, 2005, p.24)

Através da sistematização da produção de filmes de ficção, nasceu a linguagem cinematográfica. Embora uma boa quantidade de filmes com um ou outro elemento narrativo tenha sido realizada no “primeiro cinema”, vê-se que, como um conjunto, essas obras se apresentavam como uma expressão artística experimental, um aglomerado de tentativas desordenadas e heterogêneas de disseminação de uma linguagem não definitiva e nem sempre aplicada, “os primeiros filmes eram avaliados como propostas hesitantes, primitivas e desarticuladas de se construir uma linguagem propriamente cinematográfica”.[7]

No desenvolvimento dessa linguagem, foram lapidados conceitos específicos do cinema – o específico fílmico, que engloba toda sua organização interna que define a verossimilhança propriamente cinematográfica. Essa verossimilhança, também buscada durante boa parte da história da Pintura, diz respeito ao conceito de que os fatos que decorrem da tela são fruto de uma dimensão orgânica própria de uma “realidade” da narrativa, que inclui o tempo e o espaço vistos na tela. A tudo o que se refere aos elementos e acontecimentos da tela, à “história compreendida como um pseudomundo, como universo fictício, cujos elementos se combinam para formar uma globalidade”[8] chamamos de diegese.

Assim como a arte da Renascença, que preocupou-se com possibilidades de mímese pela Pintura, a linguagem do cinema caminhou para a constante afirmação de que o enredo de um filme é uma duplicação da vida “real”, ou seja, da verossimilhança do ambiente diegético. Para isso, utilizou-se de adaptações e truques para aproximar ainda mais o meio fotográfico, suporte do registro cinematográfico, do olho e da percepção humana: deslocamento e angulação da câmera, escalas de decomposição do plano para detalhamento ou abrangência dos elementos em cena, ligação menos perceptível entre planos conseguintes. Foi a partir do desenvolvimento dessa língua própria do Cinema que se destacaram grandes realizadores como Griffith e Porter, que ao aplicarem operações somente cabíveis ao fazer cinematográfico, consolidaram o Cinema como uma arte independente, liberta do “teatro filmado”, por exemplo.

A figura do diretor de filmes no início do Cinema narrativo está, uma vez em concordância com a preservação da diegese, fadada à orientação artística de toda a obra por trás da câmera, influenciando o que há de frente ao aparelho, mas não corporifica sua atuação de maneira nítida, pois tudo deve ser disfarçado. O importante era transformar o desenrolar do enredo no mais fiel e coerente à realidade do público possível, sem que fosse sentido, de alguma forma, que os elementos diegéticos obedecessem a qualquer tipo de código, “como se todos os aparatos de linguagem utilizados constituíssem um dispositivo transparente (o discurso como natureza)”[9]. A obrigatoriedade da aplicação da linguagem que fortalecesse o diegético transformou a função do diretor em um “manipulador”, fazendo com que o espectador mergulhasse na ilusão e aceitasse que o cinema é um simulacro da realidade. Por isso, pouco se sabe sobre realizadores que ampliaram seus domínios além da atuação por trás das câmeras, e assim, nada que denunciasse que o enredo desenvolvido era um produto do pensamento (o que inclui as principais e mais originais idéias do diretor) e do trabalho humano vinha a público. A presença pessoal identificável, pois, seria inconcebível para a lógica de uma arte que se propunha essencialmente à réplica do mundo diante da tela.

De toda forma, a participação do diretor de cinema nos filmes do fim do século XIX e do início do século XX, é indiscutível. Como já citado anteriormente, na exploração da nova forma de registro (dessa vez, com movimento), muitas obras foram produzidas sem que houvesse o compromisso e a exigência clara de que fossem bem estruturadas, pois elementos da linguagem cinematográfica eram embrionários. Com a aplicação das técnicas e procedimentos próprios do cinema, o diretor tomou para si a responsabilidade de criar obras atrativas a ponto de movimentar um nicho comercial em franca ascensão e como grande possibilidade de expansão por todo o mundo.

O nome do diretor relacionado à obra cinematográfica de narrativa tem como precursor o norte-americano D.W. Griffith (funcionário da Biograph), o qual, apoiado principalmente na literatura, adaptou diversos romances para as telas e garantiu enredos com lições morais, que acabaram por consolidar o respeito que o público podia ter pelo cinema. Seu sucesso também se deve ao fato de que Griffith era um modelo do homem moderno do início do século XX: filmes como The lonely villa (1909) e The lonedale operator (1911) possuíam recursos típicos de um mundo influenciado pelos avanços científicos, como telefone e telégrafo, e eram dinâmicos e sufocantes, num reflexo do emprego inteligente da montagem paralela e da decupagem (recorte do plano), com planos aproximados e mais abrangentes, na tentativa de captar ainda mais a atenção do público.

Essa notoriedade da perspicácia do visionário Griffith, responsável pela produção de cerca de 400 filmes entre 1908 e 1913[10], é aplaudida pelo soviético Eisenstein, em A Forma do Filme (2002):

O que nos atraía não eram apenas os filmes, mas também suas possibilidades [...] sobre as possibilidades de um uso profundo, inteligente, com sentido de classe, deste maravilhoso instrumento (o cinema).

A figura mais sedutora era Griffith, porque foi em suas obras que o cinema se fez sentir como mais do que um entretenimento ou passatempo. Os brilhantes novos métodos do cinema norte-americano eram vinculados nele a uma profunda emoção da história, à atuação humana, ao riso e lágrimas, e tudo era feito com uma espantosa capacidade de preservar toda aquela aparência de um feriado filmicamente dinâmico... (EISENSTEIN, 2002, p.182)

Eisenstein também coloca corretamente Griffith como expoente para o futuro do cinema: “cativante e atraente, a seu próprio modo atraindo a atenção de jovens e futuros diretores...”.[11] Foi, entre outros fatores, pelo “o uso psicológico do primeiro plano, os seus grandes finais marcados pela convergência de tensões e pela aceleração, a combinação coerente dos vários recursos até então presentes de maneira dispersa em diferentes filmes”[12] que as obras de Griffith puderam ser reconhecidas quando comparadas a outras de sua época. Sua habilidade na escrita e na técnica cinematográfica se transformou em sua assinatura.

É possível, depois de mais um século das primeiras obras de Griffith, bater o martelo sobre a questão de que a atividade de um diretor como Griffith influenciou tanto as práticas técnicas do Cinema (por exemplo, o emprego da decupagem clássica) quanto ideológico, por ter erguido e sustentado a trama ficcional como principal corrente do cinema em termos mundiais de público e de renda.




[1] GAUDREAULT apud COSTA in MASCARELLO, 2006. p. 24.

[2] GUNNING in XAVIER, 1996. p.25.

[3] COSTA in: MASCARELLO, 2006. p.32.

[4] Ibid., p.33.

[5] MACHADO, 2005. p.91.

[6] COSTA in MASCARELLO, 2006, p.37.

[7] COSTA, 2005, p.72.

[8] AUMONT, 2008, p. 114.

[9] XAVIER, 1977, p. 32.

[10] COSTA in MASCARELLO, 2006, p.46.

[11] EINSENSTEIN, 2002, p.182.

[12] XAVIER, 1977, p.27.

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