terça-feira, 19 de outubro de 2010

2.2. O diretor no cinema clássico narrativo americano

Com a sistematização das produções cinematográficas de narrativa e a conseqüente adoção de práticas consideradas particulares à sétima arte, que implicaram na linguagem cinematográfica, a realização de filmes ganhou moldes industriais, relacionando-se com a modernidade envolvente da virada do século XIX para o século XX.

É imperativa a análise da evolução cinematográfica de arte experimental para arte industrial nos Estados Unidos do início dos anos 1900s. Essa mudança do modelo de produção cinematográfica acompanha as diretrizes econômicas norte-americanas, tendo como principal demonstrativo no setor artístico o crescimento surpreendente do nickelodeon, estimulado principalmente pela onda maciça de imigração para aquele país. Sadoul (1953, p.38) confirma o boom dos espaços de exibição: “Em cinco anos tinham sido abertos nos Estados Unidos 20.000 nickel odeons”. Renovavam o programa várias vezes por semana. Essas salas populares consumiam uma quantidade incrível de filmes de todos os gêneros. Pediam particularmente cômicos”[1] .

Com a comédia em relevo, surge no cinema o britânico Charles Chaplin, que iniciava sua carreira nos Estados Unidos em janeiro do ano de 1914, no filme de curta-metragem Making a Living, de Henry Pathé Lehrman, depois de uma temporada bem sucedida numa turnê teatral (SADOUL, 1953). Ao final de fevereiro, depois de ter trabalho em mais duas filmagens, Chaplin aparece pela primeira vez sob o personagem de Carlitos no filme Between Showers, também de Lehrman. Em seu 11º filme, dirige e atua como o “vagabundo”: Twenty minutes of love, em abril de 1914, pela empresa Keystone. Sua carreira de diretor se estenderia por dezenas de outras obras, mas também aceitava o desafio de produzir, escrever e compor trilhas em diversas outras empreitadas de sua cinematografia, muitas vezes confundindo sua figura com a de seu personagem que hipnotizou platéias de todo o mundo:

O artista, o criador no sentido mais amplo deste termo deve ser um intérprete. A marca do gênio está em compreender os desejos e as necessidades da humanidade, antes mesmo que os homens delas tenham tomado consciência. Quanto um tal laço se estabelece entre o indivíduo e a massa, só então surge um desses homens dos quais há apenas uma dúzia em cada século, na arte ou na política. Por ter compreendido esse princípio e por ter tirado dele uma rigorosa crítica dos seus métodos e da sua arte, Chaplin transpôs definitivamente a linha e tornou-se um gênio. (SADOUL, 1953, p.66)

Fiel à pantomima, manteve-se no ramo da comédia, mobilizador de massas e que lhe conferia sucesso. Resistiu, sem perder o sucesso, por anos ao advento do som em sua arte, recurso que revolucionou o cinema hollywoodiano, e se dedicou à produção de filmes de sátira à sociedade e à política, como em Tempos Modernos (1936) e O Grande Ditador (1940), ambos produzidos sob a marca da United Artists, empresa que fundou em 1919 junto a personalidades do cinema da época, como Mary Pickford, Douglas Fairbanks e até mesmo D.W. Griffith.

Apesar da forte presença do público nos espaços destinados à exibição de filmes, a indústria norte-americana não fazia frente à poderosa cinematográfica Pathé, da França, notável pela capacidade produtiva (possuía grande ofertas de títulos) e distributiva (garantia a cópia de obras de sucesso). Atenta aos planos da cinematográfica francesa em estabelecer fábricas no país e acentuar ainda mais sua expansão, a empresa Edison fechou negócio com a Pathé, tendo em vistas a recuperação do mercado por empresas nacionais: teria a responsabilidade da copiagem do negativo dos filmes da Pathé em troca da venda de direitos de exibição dos filmes da Edison no circuito europeu. A tática de minimização da atuação da Pathé foi declarada quando a empresa americana recusou-se a fazer a copiagem de todos os títulos da cinematográfica francesa e fez uma triagem de filmes estrangeiros que seriam disponibilizados às salas do país. Com esse primeiro passo, foi iniciado o processo de controle da indústria do cinema dos EUA, entre 1906 e 1908, com poder sobre a produção, circulação de cópias e locais de exibição.[2]

Aliado ao forte sentimento pátrio dos EUA, onde o espectador gostava de ver o cidadão na construção de identidade seu país nas telas e buscava de uma unidade ideológica frente à recepção dos imigrantes, os enredos românticos nacionais foram pouco a pouco tomando a posição de destaque dos famosos e tradicionais melodramas franceses.

Considerando o panorama da indústria cinematográfica norte-americana do início do século, que permitiu o crescimento da produção interna, Xavier (1977) analisa que em 1914 o sistema de aplicação do código cinematográfico já dominava as formas de representação de encenações “plausíveis” nos filmes. Influenciado por filmes europeus (em especial, de origem italiana, cujos épicos eram exibidos em sessões itinerantes de sucesso), a indústria se rendeu à produção de filmes em longa-metragem, pilar de Hollywood.

Em 1895, ninguém seria capaz de dizer como os filmes deveriam ser ou como deveriam funcionais com relação à tarefa de comunicar e mediar a realidade. A formulação gradual de uma linguagem do cinema apareceu durante os primeiros 20 anos de sua existência. Em redor de 1915, a liberdade original da arte foi amplamente restringida, enquanto seus poderes de expressão de desenvolveram milagrosamente. O cinema trocou a variedade por uma forma padronizada e, como resultado, ganhou a eloqüência. Escolheu algumas de suas infinitas opções, que se tornaram o “cinema” que todos conhecemos. O fato de virtualmente todos os filmes terem de 80 a 120 minutos foi uma convenção estabelecida em torno de 1915. (ANDREW, 2002, p.141)

Conforme exposto anteriormente, o advento do cinema sonoro veio para oxigenar as produções da primeira metade do século XX e foi rapidamente incorporada à linguagem cinematográfica de forma a imprimir cada vez mais a impressão de que o cinema é uma duplicação de acontecimentos possivelmente reais. Foi a partir do uso do som nos filmes, através de diálogos e canções, que o musical se tornou o gênero mais popular do Cinema, deixando para trás o tradicional melodrama e os épicos.

A oferta de filmes segmentada em determinados gêneros foi uma estratégia de atrair todo o tipo de público, principalmente durante a “Era de Ouro de Hollywood”, período compreendido entre as décadas de 30 e 50, confirmando a primazia econômica da indústria cinematográfica dos Estados Unidos, beneficiada pela Primeira Guerra Mundial. A “Era de Ouro de Hollywood” teve dois carros-chefe: o star system e o “cinema de gênero”, ambos formulados para a rentabilidade máxima da indústria cinematográfica.

Durante o período, os estúdios funcionavam como fábricas, por possuírem estruturas produtivas próprias, como o sistema de “integração vertical”, na qual a companhia mantinha o controle sobre toda a cadeira cinematográfica, e visava o crescimento dos lucros através de um método preciso de organização do trabalho, com divisão das tarefas e a exploração máxima dos recursos. Entra em destaque a figura polivalente do produtor, representante dos interesses do estúdio, o qual garantia a subordinação da quase totalidade dos componentes artísticos às decisões da alta cúpula da companhia: tema, elenco, orçamento e até mesmo da montagem definitiva da película, o que muitas vezes comprometeu a autonomia criativa e a credibilidade profissional dos diretores. Não bastava esse tipo de cerceamento à criação artística, a liberdade criativa dos diretores era limitada pelo Código Hays, uma cartilha restritiva que ditava como abordar e filmar certos assuntos e pelos temores de acusação de aliança com o comunismo.

O star system era uma das ferramentas do cinema clássico americano através do culto às personalidades, principalmente atores, criando de modelos de comunicação capazes de atingir um público mais vasto e indiferenciado. Herdou a tradição italiana do divismo: certos atores eram considerados mitos e recebiam atenção diferenciada, incumbida de reforçar os aspectos glamurosos de ídolos através de, por exemplo, iluminação especial para sugerir luz própria, e constantes closes-up. Cary Grant, Rita Hayworth e Gene Kelly são alguns dos nomes mais expressivos.

A classificação de filmes por gêneros, ou seja, por convenções narrativas comuns entre várias obras (cenários, complexidade de personagens, situações, ações) buscava o controle dos níveis de compreensão do espectador em relação ao enredo, de forma a não deixar que nenhum aspecto fosse perdido e evitava que o público se desligasse do espetáculo fílmico. Os estúdios repartiam os investimentos por diversos gêneros bem aceitos pelo público, como drama, a aventura, a comédia, o western ou faroeste, o musical, o gângster/policial, para garantir o resultado comercial de sus produtos e favorecer a identificação entre um determinado gênero e a empresa de produção. A maioria dos gêneros possuía em comum o tratamento melodramático dos enredos e personagens (as exceções mais evidentes eram filmes policiais), sublinhando-se o maniqueísmo bem versus mal, a determinação pessoal, capaz de superar todas as dificuldades, final feliz dos casais apaixonados e solução dos problemas, assim como a exaltação do american way of life que garantia as liberdades políticas e econômicas, a possibilidade de ascensão social e do sucesso pessoal.

Uma vez conhecidas as particularidades do “cinema de gênero”, seria claro e contundente afirmar que, em virtude do código Hays e das convenções imaculadas de realização de um filme de gênero, seja ele qual for, que fora quase impossível ao autor expressar suas particularidades estilísticas durante Era de Ouro de Hollywood. No entanto, essa afirmação seria descabida quando analisado o conjunto artístico de alguns diretores:

Mas a principal justificação do gênero não é a de que permite a diretores meramente competentes fazer bons filmes (embora possamos estar agradecidos por isso), mas a de que permite a bons diretores tornarem-se melhores ainda. (BUSCOMBE, 1973, apud RAMOS, 2005a, p.313).

Esse método de trabalho não impediu de todo que certos diretores conseguissem imprimir sua marca as filmes que faziam. Pela enquadração, direção dos atores, um diretor pode enfatizar certas coisas, diminuir outras. John Ford, um dos principais diretores da época áurea de Hollywood, freqüentemente filmava seus planos uma única vez, de forma que o montador não tinha escolha; ou filmava numa ordem que já constituía uma pré-montagem, diminuindo assim a possibilidade de intervenção do montador. (BERNADET, 1980, p.66).

Buscombe expõe sua opinião sobre a possibilidade de sentir a presença do diretor (ou autor) por trás dos códigos canônicos, dos desfechos previsíveis, dos clichês mais difundidos e que dele o diretor pode ser beneficiado: uma vez já conhecidos os elementos de um filme e ele agrada a quem assiste, o espectador tenta a se aproximar das obras do diretor em busca de uma experiência semelhante a que já teve na primeira vez e passa a conhecê-lo melhor, identificar seu estilo com maior precisão e assim, mais bem analisar seu talento.

Quando um diretor se destacava dentro de seu gênero e era freqüentemente elogiado pela mídia e pelo público, aumentava seu poder de atração sobre suas obras. Um exemplo é o britânico Alfred Hitchcock, considerado o gênio do suspense no cinema. Desde o início de sua carreira, o diretor também atuou como figurante dos filmes que realizou. Conhecida essa marca pessoal pelo público, a cada obra assistida, o espectador se desdobra para encontrar Hitchcock dentro das situações do filme. A popularidade deste “capricho” do diretor indicava ao público que o diretor não era meramente um técnico do cinema, e sim uma das peças da engrenagem do filme. Ainda que não fosse um recurso estilístico (que começou como uma necessidade: “Era estritamente prático, eu precisava encher a tela. Mais tarde tornou-se uma superstição”[3], foi uma característica própria do diretor, que não influenciou em nada a narrativa ou forma final do filme, mas que funcionou como a prova de que aquela obra era autenticamente sua, como a assinatura de van Eyck em O Casal Arnolfini. A presença do figurante Hitchcock dizia “ali está o diretor”.

Dentro de Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, Billy Wilder 1950), Cecil B. DeMille aparece representando a si mesmo, ou seja, interpreta o poderoso diretor de cinema que foi, capaz de escolher como e com quem trabalhar, indicar papéis importantes ou desestimular por definitivo a carreira de uma antiga estrela de cinema...

O diretor Orson Welles, que emprestou sua interpretação ao controverso personagem central de Cidadão Kane (Citizen Kane, Orson Welles,1941) e dele mal conseguimos o separar, também dobrou os desenhos rígidos de realização cinematográfica e escarneceu a ordem de Hollywood ao utilizar a as idas e vindas temporais, câmera de angulação e movimentos nunca antes experimentados, planos-seqüência e roteiros que não se encaixavam em nenhum dos esquemas de gênero. Seu estilo já flertava com o cinema moderno, que será conhecido no próximo capítulo.




[1] SADOUL, 1953. P.53.

[2] A dominação norte-americana na cadeia cinematográfica é, evidentemente, muito mais complexa que a pequena passagem descrita se dispõe a informar. Richard Abel, no artigo “Os perigos da Pathé ou a americanização dos primórdios do cinema americano” na versão contida na publicação de Charney e Schwartz, descreve muito bem o processo (e suas implicações) no qual os americanos tomaram o controle da indústria cinematográfica em seu país. Ver ABEL in CHARNEY e SCHWARTZ, 2004.

[3] TRUFFAUT, 2004. p.54.

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