terça-feira, 19 de outubro de 2010

4.2. A inclusão do diretor no enredo: o personagem “diretor de cinema”.

Segundo Bezerra (2007), a proliferação de filmes de carga subjetiva é um modo de expressão do sujeito pós-moderno, de predileção pelo plural e contra a sistematividade. A subjetividade é uma necessidade do homem contemporâneo, “desgarrado de uma tradição que fala por ele e produz algum sentido para sua vida, se vê compelido a falar/escrever/narrar, e agora, filmar”[1].

Como moldura estilístico-discursiva, o pós-modernismo contribuiu para o enriquecimento da teoria do cinema e da análise fílmica ao chamar atenção para um câmbio estilístico rumo a um cinema autoconsciente como meio, caracterizado pela multiplicidade de estilos e pela reciclagem irônica. (STAM, 2003, p. 332)

A presença do material pessoal conferiria à obra a articulação de desejos próprios e a reflexão da importância de sua figura ao meio em que se impõe. Nos filmes que serão comentados a seguir, vê-se que o diretor reflete criticamente sobre seu trabalho, sobre como ele deve ser feito e o que dele poderia ser eliminado. De qualquer forma, por ser absolutamente humano, são permitidas falhas, erros e omissões, o que garante uma complexidade rica à sua obra. Essa humanização da fábrica de ilusões como sistema significante devido ao trabalho do artista, alivia o potencial alienante do cinema clássico narrativo, que ainda está presente na indústria cultural, e provê ao cinema contemporâneo o diálogo entre artista e sociedade.

Esta complexidade é ainda mais interessante quando produzida a sensação de que o receptor da arte faz parte de uma grande coletividade intrínseca ao cinema, pois quando o cinema antiilusionista exige engajamento e entrega do espectador, parece lhe falar diretamente: “este filme foi feito para que você o visse como possível e real, mas vou te mostrar como funciona o cinema de verdade porque você é meu amigo”. E é essa intimidade que confere valor à obra, pois o espectador se torna parte dela, afinal é o agente de um procedimento que ele pode exercer: o da recepção. Não somente envolvido no enredo interessante pela complexidade temática, o espectador é engolido pela curiosidade inerente ao homem de saber como as coisas são feitas.

O cinema de reflexividade não abre espaço apenas para o criador se expressar demonstrar a natureza de seu trabalho. Sendo um meio de comunicação, o cinema vira canal de difusão de um pensamento, podendo este ser de crítica ou de insatisfação. As três obras cinematográficas que serão comentadas a seguir tem em comum o fato de que seu diretor assume um personagem que lhe cai muito bem: o diretor de cinema.

a) A noite americana (La nuit americaine, François Truffaut, 1973):

Expoente da nouvelle vague francesa, François Truffaut presta uma homenagem ao cinema ao encarnar Ferrand, um diretor às voltas com os problemas de produção de seu filme, Je vous presente Pámela. Por ele, Ferrand deve se doar até que todo tipo de crise que atrapalhe o andamento das filmagens seja solucionado.

Versar sobre a função de diretor de cinema é um exercício de compreensão de sua importância e sobre motivações pessoais do diretor em destacar-se na obra. O intuito de Truffaut foi o de informar ao espectador o quanto da atitude do diretor, que engloba desejos pessoais e preferências estéticas, é oferecido ao sucesso de uma obra e quanto dessas atitudes corresponderão ao significado da obra. Ao interpretar Ferrand, Truffaut traz consigo todo o símbolo de autoria, pois sua presença afirma de que esteve envolvido com o filme em todas as suas esferas. Truffaut justifica escalar a si mesmo para o papel do diretor de Je vous present Pámela:

Pensei em escolher um ator que já tivesse dirigido. Ora, eu sabia que o obrigaria a ter minhas próprias reações e que isso com certeza o deixaria irritado durante toda a filmagem. Nas mesmas situações, ele provavelmente não teria tido as mesmas reações. Isso me incomodaria, pois eu não queria que o personagem tivesse outros sentimento e atitudes que não fossem os meus. (GILLAIN apud MENSATO, 2007, p.247)

Nos créditos iniciais, metade da tela é ocupada pela impressão da banda sonora na película enquanto uma voz em off parece comandar alguma situação. Será um filme sobre cinema, que começa com um plano-seqüência interrompido pelo “Corta!” do diretor.

Logo, percebemos que a seqüência faz parte do filme dentro do filme. É uma cena de Je vous presenet Pámela. Outra tomada da mesma cena é feita e somos informados de toda orgânica das filmagens: a ação dos figurantes e dos carros que passam, os movimentos de câmera, a infra-estrutura do cenário e as ordens do diretor.

A artificialidade dos recursos é denunciada pelo comentário do funcionamento dos objetos cenográficos, como a vela que possui uma lâmpada que ajuda na iluminação dentro de cena, e a lareira, cujo combustível não é lenha, e sim o álcool e o gás que o contra-regra manipula. O próprio título do filme alude à artificialidade do cinema, pois “noite americana” é um efeito da lente que transforma as cenas rodadas durante o dia para que se pareçam filmadas à noite.

A descontinuidade é apontada pelas tentativas de filmagem de vários planos, mal sucedidos por erros dos atores ou por fatores externos, como o gato que não age conforme o esperado numa cena.

Todo o filme (no primeiro nível de leitura) é permeado pelas relações pessoais dos membros da equipe da filmagem, o que humaniza o processo de produção da obra: um ator atrapalha o andamento das filmagens por ciúmes de uma assistente; uma atriz sofre com problemas de alcoolismo e erra muitas cenas; e existe o envolvimento amoroso entre os técnicos; ocorre a gravidez de um membro do elenco...

A morte de um ator cujo personagem é extremamente relevante à trama do filme do segundo nível de leitura faz com que toda a narrativa tenha que ser modificada, para grande preocupação do produtor e desafio à habilidade do roteirista/diretor. O seguimento da produção depende dos investidores, que dão apenas cinco dias para que o problema seja contornado e o filme encerrado.

Pequenos detalhes de A noite americana explicitam que o filme é uma homenagem ao cinema: muitos planos são destinados a mostrar o contador da metragem da película na câmera, a rodagem do suporte durante a projeção do copião, e até mesmo um plano-detalhe da toalha do hotel que abriga ao atores, Jean Cocteau. Numa outra cena, vários autores de cinema são homenageados: Ferrand coleciona uma série de livros sobre diretores, como Carl Theodore Dreyer, Jean-Luc Godard, Roberto Rossellini, Alfred Hitchcock entre outros, numa inegável demonstração da admiração de Truffaut sobre esses diretores.

Quando as filmagens de Je vous presente Pámela terminam, os membros da equipe de despedem, o que encerra também A noite americana, pois o filme é feito por e para eles.

b) Dirigindo no escuro (Hollywood Ending, Woody Allen, 2002)

Woody Allen vive Val Waxman, um diretor de cinema hipocondríaco cujo auge do sucesso já completa dez anos. Seu nome está no limbo depois de realizações tumultuadas por seus excessos perfeccionistas e ataques de estrelismo. Sua única chance de voltar à atividade cinematográfica é aceitando um trabalho como o indicado de sua ex-esposa, Ellie (Tea Leoni), agora noiva do presidente de um estúdio de Hollywood, a Galaxy. Assim, Waxman sofre com o dilema de aceitar ou não o convite, já que teria que superar o orgulho feriado pela traição de Ellie e acatar os desmandos do presidente da companhia, homem que lhe “roubou” a esposa. Orientado por seu agente e pressionado pela namorada Lori (Debra Messing), uma atriz iniciante, Waxman aceita dirigir The city that never sleeps, o filme dentro do filme. Ansioso e ciente de que é sua única alternativa de recuperar-se dos fracassos anteriores, Waxman desenvolve uma cegueira psicossomática que o impede de realizar o filme. Mesmo assim, ele finge não possuir qualquer problema, que, de fato, trará alguma conseqüência ao resultado de The city that never sleeps.

Já nos créditos iniciais do filme, temos a noção de que Dirigindo no Escuro irá pautar Hollywood, pois a música que os acompanha é I’m going Hollywood, interpretada por Bing Crosby.

O filme satiriza as relações de trabalho da indústria norte-americana, baseado especialmente em estereótipos: o péssimo desempenho da atriz iniciante, o do produtor, representado com atitudes mesquinhas e desconectadas ao valor da arte; o do agente que vende como puder o trabalho de seu apadrinhado etc., mas o foco é o diretor. O estereótipo de gênio excêntrico e de visão incompreendida é defendido pelo reconhecimento de uma carreira bem sucedida (Waxman venceu o Oscar duas vezes) e de uma visão de mundo particular apesar de trabalhos desastrosos.

Sem a influência de Hollywood, está condicionado a trabalhos “menores”, como um comercial de desodorante que Waxman realiza no meio de uma nevasca no Canadá, numa metáfora do ostracismo. E a grande indústria é impiedosa: se o nome do diretor está na lama, ele dificilmente retornará à glória e tudo que envolvê-lo é fadado o fracasso.

O tom cômico de Dirigindo no escuro suaviza a crítica direta aos moldes da produção hollywoodiana. Assim, o insucesso do filme é divido entre a deficiência do diretor, que não enxerga nada, não consegue interferir em nenhum aspecto estilístico de The city that never sleeps, e a incapacidade dos grandes estúdios de lidar com novas situações, afinal, poderia ter escolhido um diretor estreante para o filme, mas temem por causa da comercialização do filme: o diretor deve ter um nome conhecido.

Assim, a voz de Allen transmite, pelo roteiro principalmente, a reprovação das metas meramente comerciais dos estúdios, através da representação de produtores mesquinhos e desconectados ao valor da arte; a condenação a mídia popular de reportagem especializada em cinema, que passa longe dos veículos de debate do cinema e se assemelha a folhetins sensacionalistas com reportagens sobre celebridades, e põe em dúvida a áurea de genialidade do diretor, que poderia muito bem defender um ponto de vista que lhe é particular, mas que não o faz porque não seria adequado à comercialização. Ou seja, recria a “política dos autores” frustrada, fadada ao desmandos dos estúdios, numa alusão de que o cinema clássico narrativo ainda impera sobre o modo de produção cinematográfico.

c) Glória ao Cineasta (Takeshi Kitano, 2007)

Os antiilusionistas exploram a mistura dos gêneros a tal ponto que o significado do trabalho passa a surgir da tensão criativa gerada por sua interação. As tensões nos forçam a refletir sobre a natureza do gênero em si, e nos tornam conscientes dos meios pelos quais a “realidade” é mediatizada através da arte. (STAM, 1981, p.56)

O último longa-metragem de Kitano, Glória ao Cineasta, é um grande delírio da mente do diretor. Inicia com uma pseudo-consulta ao neurologista, na qual um boneco de tamanho real e semelhante a Kitano ocupa o lugar do diretor. Logo somos informados sobre o problema de Kitano e a razão da consulta: em sua próxima produção, ele quer evitar a realização de mais um filme de violência, sua especialidade, e por isso, sua mente divaga entre os gêneros que viabilizariam um blockbuster e garantiria seu sucesso.

A narrativa de Glória ao Cineasta é um mosaico de pequenas seqüências que experimentam chavões de cada gênero, mas que não dialogam entre si. A cada tentativa de utilização de um gênero, o planejamento da produção (todo feito na mente de Kitano) é frustrado pela falta de objetividade ou pela falta de originalidade que apresentam, como ocorre na maioria dos casos de uso de vícios do gênero.

Tenta-se uma cena típica filmes sobre a máfia que logo é rejeitada por aludir à violência. Depois, transita entre os filmes de romance, largados por não se adaptarem bem ao estilo do diretor e por estarem saturados. Uma longa seqüência que cita ao neo-realismo – um drama familiar nos anos 1950 – é descartada por não ser vendável.

Depois da seqüência neo-realista, vem a parte mais interessante do filme de Kitano: um filme de referência à infância, como um Amarcord de Fellini (1973), que não é continuado por ser demasiado triste e lírico. Em seguida, é imaginado um enredo local, sobre costumes dos samurais, que se desenvolve com certa continuidade, porém, é encerrado anteriormente a qualquer desfecho, por achar que este tipo de narrativa já está saturado no mercado.

Recorre-se a uma cena de terror, que não assusta, muito pelo contrário, cogita-se a possibilidade de torná-la uma comédia: algumas tomadas (reais ou encenadas, não vamos saber) mostram erros de gravação, e analisa-se o absurdo de usar personagens atrativas, como a colegial e a moça de biquíni, as quais não se encaixam na atmosfera da cena. Também se recorre ao cinema-catástrofe, com a composição de uma seqüência na qual Kitano interpreta um monitor espacial que localiza um asteróide que vai se chocar contra a Terra.

Grande parte do enredo é ditada por um tipo de narrativa mais experimental, que beira o non sense. Nela, está contida a maior parte dos elementos que explicitam a infra-estrutura armada à filmagem: o boneco que substitui Kitano não interage com o resto da cena, obviamente; os apoiadores que fazem o boneco manter-se de pé são vistos; não há um fluxo lógico entre as seqüências e os planos, porque cada um é permeado por uma bizarrice diferente, e há descontinuidades propositais (quando duas personagens trocam de roupa de um plano a outro e fazem comentários sobre isso posteriormente).

A metalinguagem também está presente quando um cientista, “emprestado” da seqüência do filme catástrofe, é incluído na seqüência non sense e decide lançar um foguete, que se chocará contra o asteróide. O lançamento tem duas tentativas: na primeira, apenas o “casulo” do foguete decola, puxado por um guindaste explicitado quando a câmera é retraída e vê-se toda a equipe de filmagem envolvida na seqüência; na segunda tentativa, o foguete decola por computação gráfica, cuja aparência destoa completamente do cenário ao redor, denunciando a artificialidade do efeito.

Todos os indícios da artificialidade (muitas vezes, exageradamente) dos recursos cinematográficos funcionam, neste filme, como uma quebra da expectativa do fluxo narrativo, que já é, por si só, descontínuo. Por vezes, dá a aparência de uma produção improvisada ou amadora, como nos instantes em que se vê as mãos dos apoiadores do “boneco Kitano”, o que confere alguma graça a certas passagens.

Assim, o filme de Kitano é uma crítica à esquematização da narrativa por gêneros, por exporem lugares-comuns que já não são tão bem aceitos, mas que mesmo assim, são usados pela indústria por atrair alguma fatia do público. É uma crítica principalmente ao cinema comercial e a obrigação do diretor em desenvolver temas de sucesso, mesmo que isso signifique a adoção de parâmetros que não combinem com seu estilo.

Como no começo do filme, Kitano retorna à sala do neurologista, que verifica em seu cérebro a imagem de uma câmera que se quebra ao meio, como se dissesse que não há alternativa à rigidez do sistema.




[1] BEZERRA, 2007, p.200.

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